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Existe algum modelo de produção que não acabe com o planeta?

A economia da sociobiodiversidade mostra que é possível gerar renda deixando a floresta de pé

Pode parecer utopia falar que é possível conciliar desenvolvimento econômico com a preservação da natureza e a promoção de justiça social, já que grande parte dos processos produtivos hoje adotam modelos de alto impacto ambiental e exploração do trabalho, utilizando recursos não-renováveis, gerando poluição e causando danos irreversíveis para a natureza, mas a economia da sociobiodiversidade mostra que há uma saída. 

O aquecimento global, a desertificação, a perda de biodiversidade, a pobreza e a desigualdade social ameaçam o futuro do planeta e são apenas alguns dos sintomas desse modelo de crescimento desenfreado. Problemas sérios que persistem, apesar do desenvolvimento econômico, e se retroalimentam. Atividades como a agropecuária e a extração ilegal de madeira, por exemplo, ameaçam seriamente povos indígenas, comunidades ribeirinhas e outras populações carentes. Em alguns casos, por outro lado, essas mesmas atividades estão entre as poucas opções disponíveis de renda na região, o que acaba por gerar um dilema. 

Durante a pandemia, as desigualdades socioeconômicas aumentaram assustadoramente e a situação para os mais pobres se agravou. A fome voltou a assolar o país, na medida em que houve, nos últimos anos, um desmonte das políticas públicas de combate à pobreza.  

De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), 41% dos domicílios enfrentam hoje insegurança alimentar e 15% precisam lidar com a fome em seu cotidiano. Já nas áreas rurais, que não deveriam sofrer com a falta de alimentos, a fome atinge quase 20% das casas. 

Além disso, disparou também o consumo de alimentos ultraprocessados e de baixa qualidade, que são favorecidos por serem mais baratos e menos sujeitos à inflação, fazendo disparar a obesidade infantil, por exemplo. Parte do problema é o investimento cada vez maior na produção de commodities agrícolas para exportação, que tem comprometido a produção de alimentos de qualidade para o mercado interno.

Para a advogada e consultora socioambiental do Instituto Interelos, Daniela Rabelo, essa situação termina por gerar um ciclo vicioso. Quando levamos em conta as externalidades desse tipo de consumo, o barato sai caro. “Muito do que está sendo produzido, nós estamos pagando com recursos naturais, com água, com o solo, que está indo embora”, ressalta ela. Estamos também pagando com saúde. O consumo de alimentos pobres em nutrientes traz consigo uma série de riscos à saúde, além de alimentar uma cadeia produtiva que frequentemente envolve relações de trabalho abusivas e pouco transparentes em relação aos atores envolvidos.

Se essas questões estão ligadas entre si, as soluções também devem adotar uma abordagem integrada. Entre as propostas que têm se mostrado promissoras, tanto em teoria quanto na prática, está a abordagem da economia da sociobiodiversidade, modelo econômico que tem sido adotado por diversos países e organizações com resultados positivos. Rabelo explica que esse conceito surgiu a partir da evolução de debates sobre as relações entre sistemas alimentares e a restauração florestal. De acordo com ela, os produtos da sociobiodiversidade  “pertencem a uma gama de formas de produção e comércio que se ocupam não só do produto mas também das condições em que ele é produzido, o impacto ambiental, as relações estabelecidas, a transparência e a justiça social”.

A advogada defende que fomentar essa economia é essencial para a realidade do Brasil, país que contém um quinto de toda a água potável e um quarto da biodiversidade global, pois traz um grande potencial para regiões como a Amazônia, por exemplo, que abriga centenas de populações tradicionais e mais de 40.000 espécies de plantas, mas que também concentra a maior parte do desmatamento recente, causado principalmente pela atividade agropecuária. 

Para Rabelo, esse potencial pode ser explorado, desde que de forma sustentável, não há outra maneira de romper com o modelo atual de produção alimentar e superar a desigualdade social. “Não adianta a gente falar em restauração florestal se nós não oferecermos um modelo economicamente viável que cuide da floresta”, afirma. 

Os dados indicam que temos muito a ganhar com isso. O recente estudo “Bioeconomia da Sociobiodiversidade no Estado do Pará“, realizado pela The Nature Conservancy (TNC), em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Natura, aponta um potencial de geração de R$ 170 bilhões em renda até 2040. Mas para que isso se torne realidade, é preciso investir em ciência e tecnologia, ampliar o acesso a crédito e a preparação técnica e desenvolver mecanismos financeiros que estimulem esse tipo de economia. É também necessário regularizar territórios de uso comum como assentamentos, reservas extrativistas e terras indígenas. 

“Quando você investe em produtos da sociobiodiversidade, você está investindo em uma estrutura de produção e circulação de riquezas que mantém a floresta em pé, que reduz emissões de carbono e que reconhece os saberes de comunidades tradicionais e minorias, em geral marginalizadas dentro de uma estrutura de comercialização convencional e já bastante ‘comodificada’, voltada para os interesses de grandes corporações e circuitos de produção”, explica Rabelo. 

Com os devidos investimentos, a produção e o consumo desses alimentos poderá gerar um ciclo virtuoso capaz de promover crescimento econômico sem derrubar as florestas, fortalecendo, além disso, o tecido social da região. Mas, para isso, precisamos também mudar o imaginário coletivo, mostrando para as próprias comunidades que esse modelo de renda e trabalho é viável. Já para os atores do mercado e os representantes do governo, é preciso deixar claro que vale a pena investir nesse negócio. E estudos, como o citado acima, dão uma enorme força nesse processo, assim como os empreendimentos que têm mostrado na prática que isso é possível, como a Amazonbai, a Cooperativa de Produtores Agroextrativistas do Bailique e Beira Amazonas, que produz o único açaí 100% vegano, comunitário e certificado FSC® do mundo, tanto em manejo florestal quanto na cadeia de custódia.

Os produtos sociobiodiversidade se colocam, assim, como uma alternativa promissora em que qualidade de vida, sustentabilidade e desenvolvimento econômico caminham lado a lado. É preciso, agora, desenvolver esse modelo em alta escala e mostrar para o mundo que outra economia é possível.

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