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A agricultura familiar pode ser a saída para a redução da fome no Brasil

Agricultura Familiar

Apoio aos produtores locais é fundamental na superação da crise alimentar e ambiental que o país enfrenta

Todos os dias, milhões de trabalhadores no Brasil se levantam com o raiar do sol para trabalhar em produções agrícolas familiares. São agricultores, ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, caiçaras e outros agricultores que, através do seu conhecimento e trabalho, produzem alimentos para o mercado e para o próprio consumo. E é justamente pelas mãos dessas pessoas que a solução para alguns dos problemas mais urgentes que enfrentamos pode ser encontrada.

As mudanças climáticas, o desmatamento, a desertificação e a perda de biodiversidade comprometem a nossa existência, e a situação de insegurança alimentar enfrentada por milhões de famílias pelo mundo requer ação urgente. 

Enquanto isso, a agricultura industrial baseada na produção de commodities agrícolas para a exportação ocupa a maior parte das terras destinada à agricultura. Esse modelo cultiva monoculturas que reduzem a biodiversidade ao diminuir a quantidade de espécies de plantas presente e danifica o solo ao retirar a cobertura vegetal e deixá-lo exposto, além do alto de água e de insumos como pesticidas e fertilizantes artificiais. Além de trazer menos empregos e comida nas mãos dos brasileiros, gera um altíssimo impacto ambiental.

O último levantamento do MapBiomas sobre o desmatamento no Brasil aponta que a agropecuária foi responsável por 97% do desmatamento em 2021, que por sua vez aumentou em 20% em relação a 2020. Os biomas mais afetados foram a Amazônia, o Cerrado e a Caatinga, onde ocorreu 96% do desmatamento do ano. O bioma amazônico foi o mais afetado, tendo perdido quase 980 milhões de hectares de floresta (59% do total do país), uma área mais de seis vezes maior do que a cidade de São Paulo. Além disso, mais de 40% das terras indígenas sofreram desmatamento, incluindo vários territórios que já foram demarcados.

Fome e insegurança alimentar

Quando esses dados são pensados em conjunto com informações relacionadas à fome, a conexão entre esses problemas começa a ficar mais clara. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN) apresentou este ano o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil.

De acordo com o estudo, 28% dos domicílios se encontram em situação de insegurança alimentar leve e 30% com restrição quantitativa de alimentos no momento em que foi lançado, Entre os lares enfrentando restrição quantitativa, 15% estavam convivendo com a insegurança alimentar grave, que é quando a situação chega ao ponto de faltar alimentos à mesa. Essa é uma situação de fome. O que chama atenção também nesses dados é a que a fome é mais presente nas áreas rurais, atingindo 18,6% dos domicílios. Além do mais, a região mais afetada é a região Norte, que concentra 25,7% das famílias em situação de insegurança alimentar grave. 

É marcante que as áreas onde mais alimentos são produzidos são também as mais afetadas pela fome, e a região do país mais atingida é onde se encontra o bioma mais desmatado atualmente. O inquérito também evidencia o desmonte de políticas públicas como uma das causas da fome, o que inclui políticas relacionadas ao incentivo da agricultura familiar como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), extinto em 2021. Esses problemas estão então intimamente ligados, assim como as suas soluções, e a agricultura familiar faz parte da resposta. 

Cultivando a solução

Para superarmos essa crise precisamos reformular os nossos sistemas alimentares e estimular uma produção agrícola sustentável e voltada para a garantia da segurança alimentar. E essa mudança requer a promoção da agricultura familiar priorizando modelos de produção e empreendimento capazes de atender as demandas do mercado sem derrubar as florestas. 

De acordo com o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar de 2022 produzido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a maior parte do alimento saudável e sustentável consumido pelos brasileiros vem dessa forma de agricultura, apesar de ela ocupar apenas 23% das terras agrícolas. A agricultura familiar também é responsável por mais de 10 milhões de ocupações no campo (67% do total), além de desempenhar um papel essencial na preservação de culturas alimentares.

No mundo, é desse modelo que vem 80% do alimento consumido de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), que recentemente declarou os anos 2019-2028 como a década da agricultura familiar.

A agroecologia e a permacultura, entre outros modos de produção, têm mostrado grande potencial nesse sentido, desenvolvendo métodos que aliam o conhecimento científico com os saberes tradicionais na produção de policulturas sustentáveis . As melhores práticas atualmente são capazes não apenas de preservar mas também de regenerar a terra, recuperando áreas degradadas, trazendo biodiversidade e produzindo alimento saudável e de qualidade.

Assim, é possível não apenas parar de desmatar, mas reverter o desmatamento e a degradação do solo através da agricultura regenerativa. Essas formas de produção também apresentam um grande potencial para combater a mudança climática, mitigando a liberação de gases de efeito estufa ao mesmo tempo que capturam carbono da atmosfera. 

É importante também que esse processo traga renda e alimento para os diversos produtores e respeite e promova as culturas alimentares dessas populações, sejam elas povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, silvicultores, agricultores familiares e outras pessoas que trazem comida para as mesas dos brasileiros.

Agricultura familiar na cidade grande

Ainda que a cidade de São Paulo se configure como a expressão máxima do urbano, cerca de um terço de seu território tem características rurais. É óbvio, no entanto, que o rural paulistano não se enquadra nas definições mais tradicionais propostas para o rural no Brasil.

Com isso em vista, a Prefeitura de São Paulo lançou, em 2014, o projeto Ligue os Pontos, visando fortalecer a cadeia de valor da agricultura local com o uso de tecnologia como ferramenta de integração e coordenação entre as iniciativas e as partes interessadas associadas à cadeia – do setor público e da sociedade civil, e o Instituto Interelos atuou no projeto estruturando o processo de captação de novos parceiros e investidores.

Com a proposta, a cidade de São Paulo foi vencedora do prêmio Mayors Challenge 2016, promovido pela Bloomberg Philanthropies. A organização premiou iniciativas inovadoras em políticas públicas nas cidades da América Latina e do Caribe. São Paulo recebeu o prêmio principal, com a premissa de que um dos grandes desafios a ser enfrentado pelas cidades latino-americanas é estabelecer uma relação sustentável entre as áreas urbana e rural.

Economia da sociobiodiversidade

Na Amazônia, por exemplo, isso envolve estimular a economia da sociobiodiversidade, que valoriza a produção das populações locais e os seus conhecimentos usando técnicas agrícolas adaptadas ao bioma. Um exemplo é o uso de agroflorestas, que são sistemas de plantio que imitam as condições naturais da floresta utilizando espécies de plantas com valor comercial e/ou de uso.

Para que isso seja feito, é preciso fomentar um ambiente que estimule a agricultura familiar e os modelos de empreendimento mais capazes de atender as demandas do mercado e gerar renda de forma sustentável. Isso envolve uma série de abordagens como o desenvolvimento de políticas públicas que visem combater a fome e estimulam esses modelo, favorecendo populações rurais, povos indígenas, quilombolas e outros produtores, o fornecimento de acesso a crédito e assistência técnica, investimento em pesquisa e fomento do cooperativismo e da economia solidária.

Assim, essas iniciativas podem crescer em escala e substituir modelos agrícolas ultrapassados e de alto impacto ambiental, desenvolvendo uma agricultura que prioriza as pessoas e o meio ambiente ao invés do lucro e que possa alimentar o planeta e erradicar a fome preservando a biodiversidade. As ferramentas necessárias nós já temos, só precisamos começar a usá-las.

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