Modelo apresentado para uma cadeia de valor sustentável busca desenvolvimento no menor tempo e com o mínimo investimento
Uma vivência de muitos anos em determinada região pode trazer inúmeros aprendizados, mas se a experiência não for estudada e, sobretudo, estruturada, dificilmente poderá ser aproveitada e replicada em outros territórios.
Os habitantes do arquipélago do Bailique, um distrito do município de Macapá, na foz do rio Amazonas, a aproximadamente 185 km da capital do estado do Amapá, vivem, predominantemente, para a pesca e agricultura de subsistência. A maioria das pessoas que moram na região, pertencem a comunidades rurais e dependem do transporte fluvial para se deslocar entre as ilhas e o continente. O acesso ao arquipélago ocorre apenas através do rio Amazonas, com duração média de 12 horas de barco.
A energia elétrica é gerada por meio de geradores a diesel, e o acesso à água potável é limitado, muitas vezes obtido por meio de poços artesianos. As escolas são, geralmente, pequenas e contam com poucos recursos, e a oferta de serviços de saúde é bastante limitada. As comunidades locais têm lutado para obter serviços básicos do governo, como transporte regular, educação de qualidade e assistência médica adequada.
Foi nesse território insulado que surgiu, em 2017, uma cooperativa que mudaria para sempre a vida dos moradores daquela região e o fruto dessa cooperação tinha um nome bem conhecido.
Açaí, um estudo de caso
Desde o final da década de 90, o açaí começava a se expandir e ganhar aceitação no mercado nacional e internacional com o aumento do consumo de sua polpa. Hoje em dia, é considerado uma das frutas com maior destaque socioeconômico na Amazônia e tornou-se o produto de maior potencial de distribuição de renda para a população local.
O Brasil é um grande produtor de açaí e o maior exportador de sua polpa congelada, enquanto os Estados Unidos são o principal mercado importador do fruto. E esse mercado de exportação de açaí tende a crescer cerca de 10% ao ano até 2026, impulsionada sobretudo pela demanda crescente da indústria de sucos dos chamados “superalimentos”.
A questão é que o açaí extraído no Bailique pode levar 15 horas de barco até chegar à agroindústria, em Macapá, e mais quatro dias até chegar aos centros consumidores, e o fruto precisa ser refrigerado do momento que sai do pé até chegar à boca do consumidor. Como vencer esse enorme desafio logístico, mantendo a qualidade e a competitividade do produto, é um dos maiores desafios encontrados no estudo de caso dessa cadeia de valor em particular. A cooperativa, que ganhou o nome de Amazonbai, em referência ao distrito do Bailique, nasceu do desejo dos comunitários em profissionalizar e promover rendimentos mais justos a partir da extração de açaí, a vivência e conhecimentos adquiridos ao longo dos anos foi essencial para apoiar os estudos e programas de crescimento desenvolvidos por consultores e parceiros. Mais tarde, a cooperativa se expandiu também para o território do Beira Amazonas, que abrange as 26 comunidades da calha norte do Rio Amazonas até o Arquipélago do Bailique, mas o desafio é o mesmo.
"Não se chega ao território propondo boas práticas sem entender o que a comunidade faz. Boas práticas são construídas a partir da conexão com os saberes tradicionais."Mariana Chaubet
Do protocolo comunitário à agroindústria
Implementar cadeias de valor baseadas em extrativismo sustentável depende de intervenção simultânea em todos os seus elos, do protocolo comunitário à chegada do produto ao mercado.
No caso da cadeia do açaí do Bailique, a história começou em 2013, com a instalação de um protocolo comunitário que engajou os comunitários acerca de seus direitos enquanto comunidades tradicionais e os motivou a defender seus territórios. Durante os dois anos de sua construção, diversos gestores públicos e parceiros visitaram o Bailique para colaborar na articulação entre os comunitários e as políticas públicas e o resultado foi a criação do primeiro protocolo comunitário do Brasil com essa metodologia. Acabou por se tornar uma ferramenta importante para a estruturação de um modelo de desenvolvimento local que enxergasse as demandas comunitárias, fortalecesse e engajasse os produtores para fazer um enfrentamento ao extrativismo predatório tão comum na Amazônia.
A criação da cooperativa, em 2017, foi uma consequência deste protocolo, com a comunidade escolhendo o açaí como a principal cadeia produtiva a ser desenvolvida em seu território, o que estimulou uma socioeconomia sustentável que valoriza o trabalho do extrativista e a conservação da floresta através de garantias socioambientais obtidas com as certificações. No ano seguinte, já cientes da necessidade de se investir em educação, os comunitários criam a primeira Escola Família Agroextrativista do Bailique (EFAB).
Em 2019, o negócio se expandiu com a criação do protocolo comunitário do Beira Amazonas e a adesão de 43 novos cooperados na Amazonbai. Na mesma época, o Instituto Interelos iniciou estudos para o desenvolvimento da implementação da infraestrutura básica da agroindústria, que foi inaugurada no final de 2021, dando mais autonomia para os cooperados.
"Sistematizar significa juntar lições aprendidas e desafios vencidos e propor melhorias para otimizar o processo, deixando a construção da cadeia mais estruturada."Mariana Chaubet
O passo a passo para estruturar uma cadeia produtiva
A ideia de sistematizar todo o processo de criação da cadeia do açaí visa contribuir para fortalecer e facilitar a implementação de iniciativas futuras de caráter semelhante e surgiu em 2021. A missão é ambiciosa e requer realizações de alta complexidade, como criar consensos, organizar bases produtivas, articular territórios, agir ambientalmente de forma correta, agregar valor a um produto de base comunitária, abrir mercados para um novo produto, ganhar escala de produção e, sobretudo, gerar autossuficiência dentro de uma ação de economia solidária. Para que a cadeia do açaí na região da foz do Rio Amazonas continue crescendo, o Instituto Interelos realizou, em conjunto com parceiros da região, um estudo com poder de replicabilidade para outras cadeias produtivas intitulado “Cadeias de Valor Sustentáveis: Inclusão e Autonomia Comunitária no Açaí Amazônico” e realizado pelos consultores Eduardo Nicácio e Mariana Chaubet, com coordenação geral de Aerton Paiva e financiamento do Fundo JBS pela Amazônia.
No documento, são apresentadas as premissas, os fundamentos e o passo a passo para a estruturação de uma cadeia produtiva sustentável em comunidades tradicionais em regiões de economia baseada em extrativismo. O estudo foi feito a partir de dois desafios comuns aos processos de desenvolvimento de uma cadeia de valor sustentável na Amazônia: como estruturar uma cadeia produtiva no menor tempo e com o mínimo de investimento, partindo do pressuposto de que é fundamental incentivar atividades econômicas de baixo impacto ambiental e intensificar práticas sustentáveis de produção aliadas à preservação do meio ambiente. Mas nada disso pode, de fato, acontecer sem um dos pilares mais importantes para o desenvolvimento dos territórios: a educação.
"Com práticas sustentáveis, a relação da comunidade com o território passa a ser não de exploração, mas de cooperação, cuidado recíproco e aprendizado."Eduardo Nicácio
A educação é a alma do negócio
Pensada a partir de uma abordagem ampla, que educa em todos os seus aspectos, com ferramentas que contribuem para o processo de aprendizagem integral, estimulando que as pessoas se tornem protagonistas na transformação da sua própria realidade e, especialmente, na ação de desenvolvimento socioeconômico em curso, a educação é um pilar fundamental dessa transformação.
Por outro lado, para que essas cadeias de valor se tornem não apenas sustentáveis, mas também lucrativas e permanentes, é preciso investir nos princípios de cooperação e protagonismo comunitário, responsabilidade socioambiental e melhoria da qualidade de vida das comunidades envolvidas. Isso nos leva a uma segunda questão: as cadeias de valor levam tempo para amadurecer, assim como o fortalecimento do tecido social e a transformação de produtores em protagonistas, e precisam, por isso, de investimentos contínuos até que se tornem autossuficientes.
O estudo comprova, por fim, a importância de se atuar de forma simultânea em todos os elos da cadeia produtiva, desde o seu início, com o protocolo comunitário, até a sua ponta final, quando o produto chega ao mercado, priorizando sempre um projeto de desenvolvimento fundamentado na educação de seus integrantes e que possa ser replicado em outros territórios. Desenvolver uma região dá trabalho e leva tempo, mas é perfeitamente possível.